Dono de uma vida e só


Sempre que saio do supermercado, sacolas na mão, fico me perguntando se não teria esquecido nenhum item da lista de compras que, por preguiça de passar para o papel, guardei na cabeça mesmo.

Arrependo-me por ter vindo a pé. O peso das compras faz o percurso até minha casa parecer mais longo.


Decido passar pela praça. Grama limpa, canteiros bem cuidados, charmosos bancos de madeira. Ponho as compras de lado e fico a observar as pessoas. Tudo parece estar onde deveria estar. Tudo, menos o homem do outro lado da rua. Com roupas sujas, sentado sobre um colchão velho na calçada. Alheio ao que acontece à sua volta, como se não tivesse consciência do que ele é. Restos de comida a seu lado. Talvez sejam restos do seu jantar de ontem ou talvez sejam restos para o seu almoço de hoje. Também há uma latinha velha e enferrujada onde alguns passantes deixam uns trocados. Não encaram o homem.


O mais intrigante é que ele não parece triste nem preocupado. É inexpressivo, como se estivesse apenas esperando.


Penso no desconforto; vários dias sem banho, as mãos sujas, a barba enorme. E apesar de tudo isso, o homem parece sentir-se à vontade, deve ter se acostumado. Talvez ele seja um desses retirantes sem sorte. Esposa e filhos provavelmente o  esperam em algum lugar, mas ele não se lembra mais da família nem da casa. Agora ele vive apenas para si mesmo.


Já é por volta de meio dia, não há mais sombra na calçada do homem. Ele permanece lá, pega do chão a vasilha com restos de comida. É seu almoço.


Almoço. Agora me lembro, vou fazer carne com legumes para o almoço. Esqueci de comprar as batatas. Volto ao supermercado com minhas sacolas pesadíssimas. As pessoas continuam passando, o homem sujo continua sentado na calçada.




*Redação dos tempos do cursinho.